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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Uma história do Lucunga

 


 

ÁFRICA – MEMÓRIAS 13

 

Passaram dois homens brancos vestidos de caçadores, logo pela manhã, num “land rover”. Passaram pela picada adjacente à vedação de arame farpado do quartel. Iam armados, pois via-se o cano de uma carabina. Abrandaram a marcha numa indecisão de fazerem uma paragem ou não. Acenaram e partiram com a velocidade que o mau piso da picada lhes permitia. Deixaram no ar a poeira vermelha do caminho.

Sentimos que havia agitação entre os pretos da senzala. Para nós, tropa, foi-nos quase indiferente, mas estranha, aquela aparição. Fazendeiros, com certeza, e esses tinham toda a liberdade de se movimentarem, embora correndo todos os riscos de serem surpreendidos por uma emboscada, um ataque dos guerrilheiros.

O céu já enrubescera no declínio do Sol, num entardecer cálido, lento e único daquela terra poderosa e quase infinita – Angola, Lucunga. Sentimos de novo o ruído do motor do “land rover” que tinha passado de manhã.

Desta feita entraram os dois colonos, alegres e bem dispostos no quartel. Foram recebidos com hospitalidade e gentileza. Foi-lhes servida cerveja e wisky. Jantaram na messe de oficiais connosco. Disserem que tinham sido informados que pela nossa zona andava uma enorme manada de elefantes e que andavam a fazer uma pesquisa sobre isso. Nem acreditámos nem duvidámos. Não tínhamos perguntas a fazer. Elefantes por ali havia-os, solitários e em manadas. De vez em quando faziam, durante a noite, incursões nas lavras dos negros, causando prejuízos. Os pretos faziam fogueiras e batuques para os afugentar.

Suspeitando que ali, naquela passagem dos dois colonos e na exuberante alegria que manifestavam, havia mistério, fui sorrateiramente espreitar o jeep. Embrulhadas numa lona estavam duas enormes presas de elefante.

Afinal não se tratava apenas de observação de elefantes, mas de algo bem pior. A caça ao marfim e o abate sem piedade de um dos seres mais belos e inteligentes da natureza.

Partiram já noite cerrada. Despedidas cordiais. Até um dia!

Eu fiquei-me a cismar neste embuste.

 

Na madrugada seguinte, negros da senzala, homens e mulheres, sozinhos ou em grupo, atravessaram o recinto do quartel e seguiram, picada fora, o mesmo rumo dos colonos da véspera.

Pelo meio-dia ardente, voltaram ajoujados com carne, em bacias de esmalte equilibradas sobre rodilhas de capim ou algum trapo, nas cabeças. Recordo-me do feiticeiro velho que também passou, apoiado num cajado tosco. Recordo-me de Juliana na sua elegância e beleza, parecendo que nem pisava o chão. Cantavam.

A linhas de roupa da senzala encheram-se de carne de elefante para secar ao sol. Houve batuque à noite.

A senzala ficou abastecida. Um elefante a menos. Dois caçadores furtivos de elefantes felizes também.

Senti-me perdido perante este comportamento, expedientes e mentira… afinal próprios da natureza humana.

Mas de África, compradas em Maquela do Zombo, vindas do Congo, também trouxe duas estatuetas, em marfim, de raparigas negras com penteados africanos.

Afinal também eu pactuei, embora indirectamente, com a matança dos elefantes.

Natureza humana!...

MFC 15-12-13

(texto do nosso companheiro Manuel Ferraz Cardoso)

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