ÁFRICA – MEMÓRIAS 13
Passaram dois homens brancos vestidos de caçadores, logo
pela manhã, num “land rover”. Passaram pela picada adjacente à vedação de arame
farpado do quartel. Iam armados, pois via-se o cano de uma carabina. Abrandaram
a marcha numa indecisão de fazerem uma paragem ou não. Acenaram e partiram com
a velocidade que o mau piso da picada lhes permitia. Deixaram no ar a poeira
vermelha do caminho.
Sentimos que havia agitação entre os pretos da senzala. Para
nós, tropa, foi-nos quase indiferente, mas estranha, aquela aparição.
Fazendeiros, com certeza, e esses tinham toda a liberdade de se movimentarem,
embora correndo todos os riscos de serem surpreendidos por uma emboscada, um
ataque dos guerrilheiros.
O céu já enrubescera no declínio do Sol, num entardecer
cálido, lento e único daquela terra poderosa e quase infinita – Angola,
Lucunga. Sentimos de novo o ruído do motor do “land rover” que tinha passado de
manhã.
Desta feita entraram os dois colonos, alegres e bem
dispostos no quartel. Foram recebidos com hospitalidade e gentileza. Foi-lhes
servida cerveja e wisky. Jantaram na messe de oficiais connosco. Disserem que
tinham sido informados que pela nossa zona andava uma enorme manada de
elefantes e que andavam a fazer uma pesquisa sobre isso. Nem acreditámos nem duvidámos.
Não tínhamos perguntas a fazer. Elefantes por ali havia-os, solitários e em
manadas. De vez em quando faziam, durante a noite, incursões nas lavras dos
negros, causando prejuízos. Os pretos faziam fogueiras e batuques para os
afugentar.
Suspeitando que ali, naquela passagem dos dois colonos e na
exuberante alegria que manifestavam, havia mistério, fui sorrateiramente
espreitar o jeep. Embrulhadas numa lona estavam duas enormes presas de
elefante.
Afinal não se tratava apenas de observação de elefantes, mas
de algo bem pior. A caça ao marfim e o abate sem piedade de um dos seres mais
belos e inteligentes da natureza.
Partiram já noite cerrada. Despedidas cordiais. Até um dia!
Eu fiquei-me a cismar neste embuste.
Na madrugada seguinte, negros da senzala, homens e mulheres,
sozinhos ou em grupo, atravessaram o recinto do quartel e seguiram, picada
fora, o mesmo rumo dos colonos da véspera.
Pelo meio-dia ardente, voltaram ajoujados com carne, em
bacias de esmalte equilibradas sobre rodilhas de capim ou algum trapo, nas
cabeças. Recordo-me do feiticeiro velho que também passou, apoiado num cajado
tosco. Recordo-me de Juliana na sua elegância e beleza, parecendo que nem
pisava o chão. Cantavam.
A linhas de roupa da senzala encheram-se de carne de elefante
para secar ao sol. Houve batuque à noite.
A senzala ficou abastecida. Um elefante a menos. Dois
caçadores furtivos de elefantes felizes também.
Senti-me perdido perante este comportamento, expedientes e
mentira… afinal próprios da natureza humana.
Mas de África, compradas em Maquela do Zombo, vindas do
Congo, também trouxe duas estatuetas, em marfim, de raparigas negras com
penteados africanos.
Afinal também eu pactuei, embora indirectamente, com a
matança dos elefantes.
Natureza humana!...
MFC 15-12-13
(texto do nosso companheiro Manuel Ferraz Cardoso)
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